Outra chance

Abri os olhos devagar: a luz que entrava pela janela aberta era quase ofuscante. O sol parecia já estar a pino. Um silêncio absurdo me rodeava; onde estavam os passarinhos cantando a essa hora? Certo, isso nem tinha aqui mesmo, mas e os carros passando na rua? Quando me concentrei, já suficientemente acordada, me dei conta: eu não estava ouvindo nada. Som algum, nenhum ruído. Por que o mundo silenciara?
Sentei na cama, tentando pensar, mas o silêncio era absurdo e enchia minha mente. Olhei para minhas mãos e elas pareciam estranhas, como se não fossem minhas. Levantei-me e dei de cara com o espelho do guarda-roupa: quem era aquela criança parada em frente a mim? Eu tinha vinte anos, e não os dez que a menina que eu via aparentava.
Então as memórias vieram de súbito, como um filme daqueles antigos, ou um sonho meio borrado: eu havia morrido num acidente de ônibus. Ironia do destino, eu, que não acreditava em via após a morte, ganhei uma nova chance de viver. Lembrei-me do senhor de ar cansado e aparência idosa me dizendo que eu iria reencarnar, teria uma nova vida, uma nova chance, mas não consigo lembrar por qual motivo me mandariam de volta. Lembro também que iria para uma realidade diferente da minha: nova vida, novo corpo, novas oportunidades, foi o que me disse, ou algo parecido.
E agora eu me olhava no espelho, uma menina de 10 anos de idade, cabelos castanhos e encaracolados e olhos grandes. E até onde eu conseguia perceber agora, eu era surda. Não ouvia um ruído sequer. E esse pensamento me assustou absurdamente.
Um nome me veio à mente: Julia. Devagar, as lembranças dessa que eu agora era começaram a se apoderar da minha mente. Pelo visto, memórias de uma vida passada não duravam pra sempre.
Andei até a porta do quarto em que eu estava e a abri, estranhando ainda que ela não fizesse o costumeiro rangido, seguindo pelo corredor de paredes brancas até a cozinha. Uma mulher alta, de cabelos da cor dos meus, estava preparando algo com cheiro de torradas e chocolate quente. Eu vi uma colher cair no chão quando ela - minha mãe, eu agora pensava - esbarrou numa bandeja na mesa. Mas nenhum som. Era um mundo estranho, diferente. Mas, ao mesmo tempo, eu sentia que era um mundo incrível. Eu sentia cada diferente fragrância que compunha o ar à minha volta. E via mais cores, e estas mais brilhantes. Meu corpo parecia adaptado a este mundo; meus outros sentidos eram mais aguçados nesse corpo, sem a audição, do que no antigo corpo, na antiga vida. Na verdade, precisei forçar a memória para analisar as antigas lembranças; elas esvaíam-se da minha mente mais rapidamente do que eu conseguia retê-las.
Enquanto eu tentava segurar as lembranças antigas, a mulher na minha frente, minha mãe, virou-se e meu viu lá, em pé, com o olhar vago. Fez um gesto que eu entendi como sendo Bom dia!, e deu um sorriso. O sorriso mais sincero que eu jamais lembro ter visto. Chamou-me para sentar à mesa e tomar café, ainda com gestos. Incrivelmente, eu os captava perfeitamente. Meu novo corpo e mente sabiam como reagir. Tomamos café juntas e, quando eu terminei, ela me deu outro sorriso. Levantei da mesa e dei-lhe um abraço; era maravilhoso. Não conseguia ouvir o que ela dizia, mas sentia cada palavra não-dita em meu coração; e a música mais linda do mundo tocava em minha mente, do tipo que compositor algum no mundo conseguiria fazer, e nem meu corpo diferente e incapacitado de ouvir deixava de apreciar. Fechei os olhos e sorri também.


dianaBruna

Pauta para o Blorkutando, tema: "Eu interior". Pequeno conto, não tão pequeno quanto eu esperava. Beijinhos pra quem me lê. =*

Comentários

  1. meu deus, que muito lindo. é o primeiro texto que eu leio neste blog, e me apaixonei, estou te seguindo, e virei aqui sempre que postar. eu nunca pensei que alguém poderia escrever sobre uma deficiencia de audição, parabéns.

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  2. OI
    OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOHHHHHH
    você escreve muito bem :)

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  3. Os detalhes que poucos conseguem escrever. Gostei muito do tom sério do conto. Só achei que vc deveria ter dado mais ênfase a nova vida... se eu fosse reencarnado (nem acredito que isso vá acontecer) ia bater um desespero tremendo ao descobrir que eu era surdo. Concorda? Então é isso!!

    Ah, vlw o toque. Eu costumo passar no corretor, mas eu fiz aquele post na hora, eu tava sem nada pra postar e fiz. Vlw a dica msm... bjs
    volte sempre ^^

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  4. Tudo isso ai acima + Me deves um brigadeiro ;)

    saahsuahuhsuahushauhs

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  5. Somos formados por cinco sentidos, todos importantes, claro, mas somos capazes de sobreviver sem um deles ou até mesmo dois. Somos recompensados pela força e pela sensibilidade. O mundo dela não possui som, mas transbodava em cores e amor. Adorei o texto. Doce como o chocolate que era preparado para o café

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